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quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

As mudanças climáticas e as barreiras comerciais

Por Rabih A. Nasser e Daniela Stump, publicado no Jornal Valor Econômico, em 03/12/09

O debate sobre mudanças climáticas e as medidas para lidar com elas trazem consigo inevitáveis repercussões no comércio internacional. A adoção unilateral de compromissos de redução de emissões de gases efeito estufa se faz em geral acompanhar de medidas comerciais de equalização das condições de concorrência entre produtos importados e nacionais. No entanto, essas medidas podem adquirir um caráter protecionista e se contrapor às normas da Organização Mundial do Comércio (OMC). A melhor forma de lidar com esse potencial conflito de normas é fortalecer o regime internacional de proteção ao clima pela via multilateral.

Ao final da 13ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP-13), realizada em Bali, em 2007, os países signatários da convenção comprometeram-se a iniciar esforços adicionais para a estabilização das concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera.

O Plano de Ação de Bali caminhou paralelamente às negociações sobre o segundo período de compromisso do Protocolo de Quioto (após 31/12/2012), que traz metas de redução de emissões para os países desenvolvidos, com exceção dos EUA, que não ratificaram o acordo.

A 15ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima (COP-15) e a 5ª Reunião das Partes do Protocolo de Quioto (MOP-5), que ocorrerão em Copenhague a partir do próximo dia 07 de dezembro, devem fechar essa rodada de negociações iniciada em 2007.

Ao longo da construção do regime internacional de proteção ao sistema climático, agrupamentos regionais, governos nacionais e locais passaram a regular a temática ambiental nas suas legislações, refletindo, de um lado, a preocupação com o aquecimento global e, de outro, a necessidade de marcarem suas posições.

Em 2003, a União Européia instituiu o Esquema Europeu de Emissões para auxiliar seus países membros a alcançarem as metas de redução de emissões estabelecidas no Protocolo de Quioto – média de 8% em relação ao ano-base de 1990. No início de 2009, a União Européia deu um passo além do consenso global e fixou unilateralmente meta de redução de 20% em relação aos níveis de 1990, até 2020, e de 60-80%, até 2050.

Nos Estados Unidos, tramita no Congresso o projeto de lei Waxman-Markey, que pretende instituir uma política nacional de segurança energética e energia limpa. A proposta prevê metas de redução de emissões de gases de efeito estufa de 17% em relação a 2005, até 2020, e 83% em relação ao mesmo ano base, até 2050. O projeto propõe a criação de um sistema de cap-and-trade federal, ou seja, a imposição de limites de emissões e a instituição de mercado de comercialização de créditos gerados a partir dos excedentes de redução.

Ao adotar essas regras, os países desenvolvidos se sentem tentados a impor medidas de correção dos preços dos produtos importados ou de adaptação a padrões ambientais mais rígidos. Entre essas medidas estão os chamados border tax adjustments, que nada mais são do que sobretaxas aplicadas aos produtos importados não sujeitos às mesmas restrições ambientais em seus países de origem.

Medidas comerciais desse tipo tendem a ser especialmente prejudiciais para os países em desenvolvimento. Primeiro porque suas empresas enfrentarão maiores dificuldades para exportar. Segundo porque, para manter a competitividade exportadora, essas empresas serão forçadas a adaptar seu processo produtivo, sem contar com os mesmos incentivos e instrumentos disponibilizados pelos países ricos.

Os efeitos das políticas ambientais unilateralmente adotadas já começam a aparecer. O Esquema Europeu de Emissões prevê que, a partir de 2013, qualquer vôo que decole da Europa ou pouse naquele território deverá cumprir suas regras internas de redução de emissões. Além disso, a Diretiva Européia que visa promover a utilização de energia proveniente de fontes renováveis estabelece que considerações de ordem ambiental, social e econômica influirão nas medidas relativas à importação de biocombustíveis. Nos EUA, o projeto de lei Waxman-Markey já prevê imposição de tarifas a produtos importados ou a exigência de que esses bens se sujeitem ao sistema de cap-and-trade.

Apesar da tentativa de legitimá-las com argumentos ambientais, essas medidas podem adquirir contornos protecionistas e ser contestadas à luz dos acordos da OMC. Entre as regras comerciais potencialmente violadas estão as proibições de produtos estrangeiros serem tributados em excesso à tarifa de importação consolidada no âmbito da OMC ou de serem onerados com taxas, tributos ou exigências internas às quais os produtos nacionais não estão sujeitos. Além disso, a possibilidade de adoção de medidas necessárias à proteção da vida humana, da fauna e da flora e à conservação de recursos naturais, prevista no art. XX do GATT, está condicionada a que não constituam “restrições disfarçadas ao comércio internacional”.

Ressalva semelhante é estabelecida pela própria Convenção do Clima, que determina que as medidas de combate a mudança do clima não devem constituir meio de discriminação arbitrária ou injustificável ou restrição velada ao comércio internacional.

Além de contrariar princípios fundamentais dos regimes regulatórios tanto do comércio quanto da proteção ao clima, a adoção de medidas protecionistas em legislações ambientais desconsidera as maiores dificuldades de adaptação dos países em desenvolvimento a padrões ambientais mais rígidos.

Nesse cenário, ganha relevo a busca por um acordo em Copenhague. A falta de um consenso global sobre o nível de comprometimento de cada país com a redução de emissões, além de não ajudar no avanço da causa ambiental, aumenta a probabilidade de disputas na OMC quanto à compatibilidade com as regras multilaterais do comércio de certas medidas comerciais inseridas nas legislações nacionais ou regionais sobre mudanças climáticas. Cabe aos líderes mundiais evitar um desfecho como esse.

Efeito Copenhague

A menos de um mês da realização da 15ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP-15) e da 5ª Reunião das Partes do Protocolo de Quioto (COP-5), Estados Unidos, China e outros líderes globais chegaram a anunciar o adiamento da conclusão de novo acordo climático. O que estava escrito nas entrelinhas, hoje está escancarado: os EUA não devem se comprometer com qualquer meta de redução de emissões sem que antes Obama arrumasse sua casa. Apesar do enorme ceticismo que paira sobre a COP-15, o efeito Copenhague já pode ser sentido aqui no Brasil.

O Governo Federal anunciou “metas voluntárias” de 38,9% de redução de emissões dos gases de efeito estufa com relação ao cenário de “business as usual” de 2020, ou seja, caso nenhuma ação de mitigação fosse adotada. O Estado de São Paulo impôs metas mandatórias de redução de 20% em comparação ao ano-base de 2005, com abrangência sobre todos os setores da economia. O Município de São Paulo foi mais ambicioso, ao estabelecer metas de redução de 30% das emissões havidas em 2005, até, pasmem, 2012!

As recentes mudanças regulatórias deverão se tornar palatáveis no momento da renovação de licenças ambientais de operação, obtenção de licença prévia para instalação de empreendimentos intensivos em carbono e, antes de tudo, com a recomendável realização de inventário corporativo de emissões, para conhecimento das vulnerabilidades do processo produtivo nessa área.

O cenário normativo esquizofrênico se faz sentir não apenas no Brasil. Talvez grande parte dos empresários ainda não tenha se dado conta que a União Européia, aos poucos, vem terceirizando sua meta interna de redução de 20% dos gases de efeito estufa, até 2020. O setor de aviação foi o primeiro escolhido: a partir de 2013, qualquer vôo que parta ou pouse no território europeu deverá estar coberto por permissões de emissões transacionáveis no esquema europeu de comércio de emissões.

Mas não é só a Europa que visa externalizar suas políticas ambientais. O projeto de lei para instituição de nova política energética estadunidense, já aprovado na Casa dos Representantes e em trâmite no Senado, autoriza, a partir de 2017, a tarifação de produtos importados pelos EUA, não submetidos a restrições de emissões de carbono em seu país de origem, visando corrigir “dumping ambiental”.

Embora a multiplicidade de iniciativas seja positiva para o alcance da estabilização do clima do planeta, a heterogeneidade de políticas governamentais nacionais e locais pode trazer interferências no campo dos investimentos em setores produtivos e no comércio internacional. O alcance de consenso global sobre o grau de comprometimento dos Estados Nacionais e sua regulamentação harmônica pelos governos locais poderia poupar no futuro muita energia com disputas comerciais e fuga de investimentos diretos para “paraísos carbono intensivos”.

É certo que, independentemente da efetividade ou não do encontro, o planejamento empresarial deverá passar pela avaliação dessa rede de normas internacionais, nacionais e locais, que poderá impactar os negócios e gerar perda de competitividade, caso as empresas não estejam preparadas para o mergulho definitivo em uma economia de baixo carbono.
Daniela Stump